Mitos econômicos brasileiros #3: “Não faltam recursos ao Estado, o problema é que o Estado gasta mal”

Aqui já começamos a entrar na questão do que o Estado faz com 19,82% do PIB, já depois de pagar transferências para famílias e firmas. Críticos dizem que o grosso desse restante que fica com o Estado vai pelo ralo e se perde em órgãos ineficientes da máquina pública e, claro, em corrupção. A corrupção e a ineficiência existem, claro, e devem ser combatidas. Mas há ralos mais visíveis – e maiores – por onde o recurso público se esvai e nada têm a ver com a máquina pública, corrupção ou ineficiência.

Além do pagamento de aposentadorias e pensões, a principal despesa que o Estado faz – e que também é vista como “obrigatória” – é outra “transferência”: o pagamento de juros da dívida pública. Esses recursos tampouco ficam com o Estado.

De volta ao estudo do IPEA, então, ao subtrair o quanto o país pagou com juros da carga tributária líquida (19,3% em 2007), o que sobra para o Estado prover serviços públicos, investir em infraestrutura, Defesa, manutenção da máquina etc. foi, em 2007, o equivalente a 13,1% do PIB. O país gastou naquele ano 6,2% do PIB com juros e amortização da dívida, o maior percentual dos países da lista compilada pelo IPEA. De fato, todos os outros 17 países do levantamento pagam no máximo 3% do PIB em juros, com exceção da Itália (4,5%). Outros países, ainda, como Noruega, Irlanda e Coreia são recebedores líquidos de juros.

Logo, da lista de 18 países, o Brasil cai da 10ª maior carga tributária bruta (CTB), para a 13ª carga tributária líquida (CTL) e, finalmente, para a 17ª posição ao excluir das CTLs o pagamento com juros, em empate técnico com a Grécia (antes da crise).

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Fonte: Ipea

Assim, o que à primeira vista parecia ser um “inchaço” da máquina, decretado pela “carga tributária recorde” de 35,85% do PIB, olhando mais de perto, revela ser um Estado “enxuto”, que é sustentado por 13% do PIB – quando se exclui os recursos que, para efeitos práticos, não entram no seu caixa para bancar as despesas para seu próprio funcionamento (“custeio”) ou para atender à população.

Por outro lado, quando o “ranking” é de quem paga mais juros no mundo, o Brasil figura entre os “top 10”. Segundo dados colhidos na base do Banco Mundial, o país é o 5º do mundo que mais paga juros da dívida (títulos do governo, empréstimos de longo prazo etc.), tanto para residentes do país como do exterior, em relação ao próprio gasto público. Fica atrás apenas de Líbano, Sri Lanka, Jamaica e Paquistão (clique no gráfico abaixo para ampliar)

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Outra maneira de entender o quadro é olhando mais de perto como as despesas públicas são repartidas no Orçamento federal. Para 2014, do total gasto pela União, nada menos que 42% (ou R$ 2,38 trilhões) vão para pagamento de juros e amortização. Isso significa que o Brasil deve pagar, neste ano, R$ 1 trilhão com suas dívidas.

Outros 19,8% do Orçamento vão do Ministério da Previdência direto para o pagamento de aposentadorias, pensões e outros programas de proteção social ao trabalhador (ou seja, o grosso das transferências a que nos referimos no mito #2). Conclusão: de tudo que é arrecadado pelo governo, seja por meio de impostos, seja por meio de venda de títulos públicos (boa parte das receitas do Orçamento não provem de impostos), sobra pouco mais de um terço para gastar com investimento em infraestrutura, Saúde, Educação, Defesa, Saneamento etc..

Isso fica mais fácil de visualizar no gráfico produzido pela associação Auditoria Cidadã da Dívida Pública. Os números divergem um pouquinho dos meus porque o levantamento da associação foi feito antes, a partir da proposta de Orçamento para 2014. Já as minhas contas foram feitas depois da aprovação da lei orçamentária anual de 2014, que teve pequenas alterações, mas que não mudam a história contada pelo gráfico abaixo (clique para ampliar).

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Depois do Ministério da Previdência, as pastas que mais receberão verba da União, são as da Saúde e da Educação. Em 2014, a primeira receberá 4,25% do Orçamento e a segunda, 3,91% (pode-se acrescentar a esse montante a transferência para a Educação Básica, fazendo o total subir para 5,84%). Ou seja, apenas 10% do Orçamento federal vai para as duas áreas sociais fundamentais, sem contar com as transferências obrigatórias a Estados e Municípios constitucionalmente pré-determinadas.

Será mesmo, então, que o problema fundamental é “falta de gestão”? Será que a Educação e a Saúde no país estão sendo adequadamente financiadas – e a má qualidade dessas áreas se deve apenas a governantes que “gastam mal”? É bom enfatizar que há políticos (e clãs) que efetivamente gastam mal e poderiam fazer muito mais com os recursos de que dispõem. Mas há um limite. Trata-se de um problema mais estrutural, em que mesmo um “bom gestor” teria dificuldades de entregar os resultados esperados.

Para manter as comparações internacionais, poderíamos investigar quais países se desenvolveram contando com apenas 13% do PIB para todos os investimentos necessários em Saúde, Educação, Saneamento, infraestrutura etc.? Pensando em casos de “sucesso”, como a Coreia do Sul, poderíamos verificar qual proporção de seu PIB (ou de seu Orçamento) o país gastou (e por quantos anos seguidos) em Educação para chegar no patamar de desenvolvimento que se encontra atualmente?

Ao se analisar os números frios, outras questões, que vão muito além da lenga-lenga da “falta de gestão” ,vêm à mente: se não é desejável e possível um aumento de impostos, como fazer aumentar esses 13% que sobram para o Estado para a provisão de serviços de melhor qualidade: reduzindo aposentadorias ou pagamentos de juros? Será que a “carga tributária” é realmente pesada para todos? Quem pode pagar mais efetivamente paga mais? É possível ter um sistema tributário justo e adequado para manter serviços públicos de qualidade com uma estrutura tributária em que predominam os impostos indiretos? Como países com carga tributária bruta bem menor que o Brasil, como México e Chile, têm alíquotas máximas de imposto de renda bem maiores que as nossas (30% e 40% respectivamente, contra 27,5% aqui) que é um tributo mais justo e progressivo? A divisão dos recursos dos impostos entre os entes federativos faz sentido, levando em conta as atribuições e demandas populares por direitos e serviços públicos de melhor qualidade no plano local?

Ao desmistificar o mito do “Estado inchado” e o da “má gestão”, um debate mais profundo sobre a “carga tributária” pode começar a ser feito. Em outros termos.

19 Comentários

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19 Respostas para “Mitos econômicos brasileiros #3: “Não faltam recursos ao Estado, o problema é que o Estado gasta mal”

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  2. José Roberto

    o que sei é que trabalho três meses de graça para o governo. 27% IRPF, 1/3 do meu salário. Qualidade do ensino público e salário dos professores péssimos. Como melhorar? Salário alto implica em maior número de candidatos por vaga, mais tempo para preparo das aulas e aprovados mais competentes.

    • Olá, José Roberto. Bom, agora você sabe que a situação é pior: um terço disso, isto é, um mês do seu trabalho, vai para pagamento de juros.
      Sobre Educação, é um assunto mais complexo. Você tem toda a razão: os salários são baixos e isso de certa forma se reflete na qualidade do ensino. Mas salário não é tudo, como você deixou implícito no comentário: ter boas condições de trabalho é essencial (tempo de preparação de aula, número de aulas alocadas, número de alunos por turma, segurança, envolvimento das famílias e da comunidade etc.). Mas uma coisa é certa: não se faz Educação de primeiro nível sem um financiamento de primeiro nível.
      Por isso é preciso ir além dos mitos e investigar quais são os verdadeiros “gargalos” do país.

  3. Meu Caro Cyrus,
    Você não desmistificou o mito, ou seja, “Não faltam recursos ao Estado, o problema é que o Estado gasta mal”. O fato de se gasta-se quase 43% com juros, não há algo errado nessa gestão?

    Exemplos não faltam de gastos injustificáveis e desperdícios de toda ordem:
    http://www.culturabrasil.org/governoperdulario.htm
    http://wagnermedeirosjr.blogspot.com.br/2011/03/o-governo-gasta-muito-e-gasta-mal.html

    O fato de governo gastar mal não é monopólio do Brasil: http://economico.sapo.pt/noticias/ha-muito-dinheiro-mal-gasto-no-sns_127899.html

    Qualquer governo gasta mal!

  4. Ricardo

    Alguns pontos a levarmos em consideração:

    1 – BOM PAGADOR PAGA PELO MAU PAGADOR: As alíquotas tributárias no Brasil são altas (exceto IR) e há os impostos em cascata sob o consumo, porém a fiscalização é ruim e o Governo ainda abre renegociações de dívidas de contribuintes “Refis”, o que faz o bom pagador acabe pagando pelo mau pagador.

    2 – FISCALIZAÇÃO FOCADO NAS MÉDIAS EMPRESAS: Pergunte a qualquer Auditor de Fazenda (municipal, estadual ou federal) sobre as metas de arrecadação dele: ao invés de ir nos pequenos, vai sempre sobre as médias empresas, pois as grandes tem planejamento tributário e grandes escritórios de advocaria por trás (protelando pagamento), enquanto o “esforço” para arrecadar dos pequenos é muito menor.

    Além disso, a imensa maioria dos municípios brasileiros arrecadam valores baixíssimos de IPTU (pouca fiscalização, paga quem tem consciência), se tornando altamente dependentes de verbas federais.

    3 – MÁQUINA GOVERNAMENTAL INCHADA: sabemos muito bem o quão são inchados os órgãos públicos. Vide a Assembléia Estadual do Piauí: será que precisam de mais de 3000 funcionários para atender meros 30 deputados estaduais? Será que precisamos de 1 funcionário administrativo na educação para cada professor, como já mostrou o Gustavo Ioschpe? Será que esse mesmo modelo não é replicado em outras repartições públicas?

    4 – PREVIDÊNCIA INJUSTA: o mais interessante é que o INSS, a previdência paga pela iniciativa privada, tem lucro de R$ 10 bilhões, porém quando se colocam os gastos com a previdência pública e outras transferências de renda pelo Governo (ex.: aposentadoria rural), a conta fica R$ 50 bilhões negativa. É justo você, durante toda a vida, contribuir pelo teto do INSS (10 salários mínimos) e só receber 3 salários mínimos de aposentadoria enquanto os os servidores públicos recebem integralmente? Basta perguntar qualquer funcionário do Ministério da Previdência ou TCU que irão afirmar o mesmo.

    5 – DESVIOS DE VERBAS: em grandes cidades não é tão perceptível, mas vá a pequenas cidades. Nelas você sente muito mais o “jogo”:
    5.1 Desvios de verba do SUS. Ex.: minha avó foi internada em uma clínica pelo SUS devido a uma gripe. O que foi registrado no SUS? Que ela tinha quebrado a bacia e sofreu uma cirurgia. Eu e meus dois irmãos nascemos a 300 km daqui, porém a mesma clínica registrou que nascemos aqui e recebeu verbas indevidas. Qualquer pequena clínica ou hospital no Brasil tem equipes fabricando consultas e procedimentos fantasmas (até partos em homens!), além de médicos fantasmas. Se um dia você for internado em um hospital público, qualquer remédio receitado peça para comprar direto em uma farmácia fora do hospital, porque os medicamento do hospital são todos falsificados.

    Você acha que a clínica, assim que detectadas as fraudes, vai ser fechada? Que nada, apenas mudam o CNPJ e a Razão Social e continua a festa!

    5.2 Fraudes na Educação: muitos prefeitos criam “alunos fantasmas” para receber verbas do FUNDEF e FUNDEB (cerca de 600 reais ano). Em uma cidade de 60 mil habitantes foram detectados 1200 alunos fantasmas. Durante 8 anos, quase 6 milhões de reais foram fraudados, Imagine nas outras cidades.

    5.3 Fraudes no Saneamento básico: fazem obras “porcas” supostamente gastando milhões que nunca funcionam e como não fácil averiguar e fiscalizar (afinal, está debaixo da terra), a festa é grande!

  5. doidimaiscorporation

    Era uma vez um homem que bebia muito, muito, muito.

    Bebeu tanto, mas tanto, que contraiu cirrose e câncer de fígado.

    Na cama do hospital, evidentemente, já não bebia mais.

    O paciente então foi visitado pelo eminente médico Dr. Cyrus Afshar.

    O perspicaz Dr. Cyrus, ao observar que não existe boteco na UTI, concluiu que o problema do homem não era a bebida.

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  9. Moisés Bonniek

    Caro Cyrus,

    a explanação foi muito clara e objetiva, mas faltou você se debruçar sobre a origem dessa dívida que consome mais de 1/3 do PIB brasileiro. Se tamanha dívida impede que se façam mais investimentos sociais, é fundamental sabermos se as mesmas são realmente necessárias, e quem pode estar lucrando de fato com isso (o grande capital financeiro, por exemplo).
    Aguardo tua resposta!
    Parabéns pelo texto!

    Saudações!

    • Olá, Moisés. Obrigado pelo comentário e pela sugestão. Realmente é um bom tema ver quem realmente se beneficia com a dívida. Desconfio que não seja apenas o grande capital, mas parece que é uma questão complexa, talvez complexa demais para este modesto blog.

  10. Thiago

    Alguém precisa ser muito corajoso para embasar qualquer argumento em uma pesquisa do IPEA hoje em dia. Parabéns.

    • Obrigado, Thiago. Mas devo dizer que não precisei de coragem, não. O IPEA continua sendo uma centro de pesquisa de excelência, que há anos vem realizando pesquisas importantes em uma série de áreas dos estudos de desenvolvimento. Muita gente nunca leu nada do IPEA, nem ouviu falar do instituto até há pouco – mas já se acham no direito de criticá-lo.

      Seria prematuro, leviano e pouco inteligente rechaçar todo e qualquer estudo do IPEA só por conta de um erro (grande, vergonhoso, mas, ainda assim, apenas UM ERRO). Equívoco, aliás, que foi identificado, admitido e esclarecido, como uma instituição séria deve fazer. O responsável pela pesquisa, e diretor da área, pediu exoneração. Muitos órgãos de imprensa cometem erros piores cotidianamente (muitas vezes de maneira deliberada) e não admitem. Sua credibilidade não é questionada. E aí? O que seria mais corajoso para embasar um argumento: citar uma matéria equivocada de jornal ou revista ou citar um estudo sério de um órgão de pesquisa de excelência, que, recentemente, admitiu ter cometido UM grande ERRO em UMA de suas centenas de publicações?

      Recomendo a leitura diária da seção “Erramos” da Folha de São Paulo e do “Painel do Leitor” (onde muitas vezes há respostas de partes acusadas/citadas). É assustador. Mas isso é só uma pequena parcela dos erros que são “pegos”. Agora… é melhor ler um jornal que admite seus erros do que um jornal ou revista que não o fazem – embora muitos talvez achem que admitir erros pode prejudicar a credibilidade. Pessoalmente, acho que admitir erros – seja um instituto de pesquisa ou veículo de imprensa – só contribui para a aumentar credibilidade. Além disso, é só admitindo os erros que o veículo ou centro de pesquisa poderá melhorar seus métodos para não repeti-los.

      Por fim, só para o registro: publiquei o post MESES antes do erro do IPEA ser revelado. Não sou vidente. Na época, ninguém questionava a credibilidade do instituto.

      Mais um registro: mesmo depois do erro terrível (seguido por um linchamento midiático e virtual do instituto) que o IPEA fez, eu seguirei usando as pesquisas do instituto para embasar meus argumentos sempre que achar relevante.

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  12. Antero

    Excelente o artigo, apenas sugeriria uma complementação, poderia calcular a quanto, efetivamente, corresponderia (em U$ ou R$) esses 13,1% do PIB e dividi-lo pelo número de habitantes (e se possível comparando o resultado com os dados de outros países), assim poderíamos ter uma noção melhor do quanto o Estado gasta, per capita, aqui e e no resto do mundo.

    Desta forma, poderíamos chegar a conclusões melhores de se, com esses valores, é possível prover bons serviços (até utilizando o resto do mundo como comparação), acredito que com esses dados poderíamos até ter uma noção melhor do quanto a corrupção e ineficiência podem ser prejudiciais (por exemplo, se existissem diversos países com gasto equivalente e provendo bons serviços).

    Mais uma vez, parabéns!

  13. Gostando de ler os teus artigos, Cyrus. Porém neste você não demonstra que a gestão pública no Brasil é boa e eficiente. Você demonstra que a máquina pública faz pouco com pouco, não que faz muito com pouco.

  14. Yago Fernandes

    Sou apenas um modesto aprendiz que só tem a agradecer por qualquer tipo de informação. Fiquei fascinado com a forma que trabalhou os dados para chegar à conclusão.

    Gostaria de saber se existe alguma obra que trate os impactos da tributação centrada no consumo?

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